sábado, 6 de junho de 2009

Trabalho escravo na Esplanada

Parte III – Escravos de elite

A escravidão não é algo recente na história da humanidade. O Brasil foi o último a abolir a prática, ao menos oficialmente. Ainda assim, muitos brasileiros trabalham sob condições consideradas degradantes. É verdade que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) tem combatido o trabalho escravo. Em 2008 foram 150 fiscalizações, com quase cinco mil cidadãos resgatados. Mas o MTE não precisaria ir muito longe para encontrar pessoas que trabalham em condições precárias e sem direitos garantidos.

Seria no mínimo insólito ver servidores do Ministério do Trabalho ‘libertando’ trabalhadores de dentro de outros ministérios. Tão contraditório quanto pessoas com rendimento mensal entre três e seis mil reais entrarem em algumas características de trabalho análogo ao de escravidão. Para tornar a situação mais conflitante ainda, existem consultores que ganham mais que o dobro de terceirizados ou servidores para realizar o mesmo trabalho. É sempre bom lembrar que na Declaração Universal dos Direitos Humanos está escrito que “todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho”.

O esquema para a contratação é simples, lança-se um edital determinando o perfil desejado e que, normalmente, já tem uma pessoa escolhida – o famoso QI (quem indica) – faz-se uma seleção de fachada e se efetiva a contratação. Nem sempre os trabalhos executados são os determinados pelo edital, o que acaba por gerar um produto fictício. “Não me lembro quantos produtos eu fiz nestes 30 meses, mas levando em consideração que a média é de dois meses sem salário, devo ter feito uns quinze. Quanto à veracidade, estimo 10% verdadeiro”, diz um ex-consultor que preferiu não revelar a identidade.

Para quem está desempregado é uma ótima oportunidade. Afinal, o rendimento é alto e não é necessário pagar um monte de impostos que mal se vê os resultados. Mas o que parece bom num primeiro momento revela suas armadilhas mais tarde. Além de períodos de trabalho sem remuneração, existem consultores na malha fina da Receita Federal e casos de assédio moral. Nessa questão, pouco pode ser feito na área trabalhista até gora. Consultoria não cria vinculo empregatício. Ao menos em teoria.

O mesmo ex-consultor que ficava dois meses sem receber sofreu assédio moral e resumiu a experiência. “Em alguns casos as suas atitudes em relação ao assédio é que servirão de proteção contra o assediador, mas quando o autor é a sua chefia imediata e a chefia geral é conivente, torna-se difícil o processo de defesa”, diz. “Você não tem suporte algum no órgão em que presta serviço e nenhum respaldo financeiro caso decida ‘desistir da briga’ e pedir para sair”, completa.

Apesar da legislação trabalhista brasileira ser ampla, as agências da ONU utilizam o Acordo Básico de Assistência Técnica celebrado com o Brasil para não assumir responsabilidades. O primeiro artigo do acordo afirma que “o Governo terá a seu cargo a tramitação de todas as reclamações que possam vir a ser feitas por terceiros contra os Organismos e seus peritos, agentes ou funcionários e isentará de prejuízo esses Organismos e seus peritos, agentes ou funcionários no caso de quaisquer reivindicações ou obrigações resultantes de atividades efetuadas nos termos do presente Acordo”. Existem decisões judiciais em tribunais inferiores favoráveis às agências internacionais. Mas ex-consultores também ganharam a batalha, como no caso de Rudi Bratz, citado na primeira parte da matéria.

A grande discussão gira em torno da imunidade dos organismos. De um lado, agências como o Pnud dizem possuir imunidade absoluta, garantida pelos Estados membros da ONU, principalmente a relacionada à execução de decisões judiciais. De outro, os que se sentiram lesados com os métodos utilizados pelas agências argumentam que a imunidade é relativa. Entendimento dado pelo Tribunal Superior do Trabalho. Mesmo assim, a imunidade relativa não garante o pagamento de dívidas trabalhistas, pois a justiça brasileira não tem poder para executar as sentenças. É impossível obrigar os organismos internacionais a pagar ou mesmo penhorar bens das agências. Ações desse tipo poderiam causar um incidente diplomático.

Entretanto, o mesmo artigo que isenta as agências da ONU afirma que se “o Governo, o Presidente Executivo da Junta de Assistência Técnica e os Organismos interessados concordarem em que tais reivindicações ou obrigações provenham de negligência grave ou falta voluntária desses peritos, agentes ou funcionários.”, o poder público não deverá se responsabilizar por falhas cometidas na Cooperação Técnica Internacional. Resta saber quando os agentes envolvidos definirão quem são os responsáveis por atos em desacordo com a legislação trabalhista brasileira.


Ramon Pires
Jornalista


Próximo capítulo - Ministério Público do Trabalho e Organização dos Estados Americanos entram na história.


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