terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Trabalho escravo na Esplanada

Parte I – O limbo dos não concursados e não terceirizados (e sem D.A.S.)

Muitos sonham com a estabilidade que um emprego público traz. Bom salário, gratificações e trabalho na medida certa. Mas para quem está num emprego ‘normal’ a realidade é bem diferente. Quem está nessa, tem que mostrar eficiência e rezar para o patrão seguir à risca a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Em tempos de crise é ainda pior. Sempre aparecem propostas para alterar as leis trabalhistas, usando para isso o termo flexibilização. Quando vejo esse tipo de coisa, lembro da orientação do governo Bush de não usar a expressão aquecimento global e sim alterações climáticas – termo mais suave. A intenção é a mesma. No caso da legislação trabalhista é usada a palavra “flexibilizar” para não se falar em eliminar direitos e benefícios. Mas enquanto a queda de braço entre patrões e empregados para ver quem perde menos com a crise é travada, o trabalho escravo acontece no centro do poder.

Além da CLT, os trabalhadores são assegurados pelo artigo sétimo da Constituição Federal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos inclui, igualmente, direitos trabalhistas. O problema é quando justamente a Organização das Nações Unida (ONU), por meio de agências como Pnud, Opas e Unesco, permite que haja casos de trabalho análogo ao de escravidão em contratos de Cooperação Técnica Internacional (CTI) firmados com a União. Consultores, como são chamados os contratados pelos organismos internacionais, que deveriam apresentar os resultados de seus trabalhos por meio de uma espécie de ‘relatório’ chamado de produto, cumprem jornada de trabalho nos ministérios como se fossem terceirizados ou concursados.

O trabalho exercido pelos consultores se enquadra em muitos aspectos como escravo por não terem direitos como 13º salário, férias ou receber por horas extras. Além disso, substituem mão-de-obra que deveria ser concursada e não podem formar sindicato. Existem casos de consultores que exercem funções administrativas nos ministérios e ficam até cinco meses sem receberem ‘salários’, apesar de trabalharem, em média, 8h por dia. À margem da legislação trabalhista do país, não contribuem para a previdência e não podem ter a carteira de trabalho assinada, pois a consultoria não deveria criar vinculo empregatício.

Um breve histórico
Os acordos de CTI foram desenvolvidos a partir da década de 1950 e passaram a fazer parte da missão institucional de várias agências internacionais. O Brasil assinou com a ONU o Acordo Básico de Assistência Técnica na época da ditadura militar, em 29 de dezembro de 1964. O objetivo era conseguir a execução de programas, projetos e ações de Cooperação Técnica Internacional.

Em 1987 foi criada a Agência Brasileira de Cooperação, do Ministério das Relações Exteriores (ABC/MRE), para coordenar os projetos de CTI. Segundo o presidente do Fórum Brasileira de Direitos Humanos (FBDH), Luiz Afonso Costa de Medeiros, desde o princípio houve irregularidades na execução, pois até hoje a ABC/MRE faz parte da administração direta e nunca existiu nenhum sistema de avaliação para atestar o fortalecimento institucional. “Para cada programa de CTI, o governo brasileiro deveria definir um marco programático que delimitasse as áreas de concentração e o perfil das atividades a serem implementadas”, avalia.


A ‘Torre de Babel’ começa a tomar forma
A procuradora-regional da União Helia Maria Bettero discorda que a ABC não cumpra o que deve. Na Ação Civil Pública 1044/01, ela afirma que as atividades de execução nacional coordenadas são pontos centrais da construção do modelo institucional da agência e dos modelos buscados pelos organismos executores dos programas de cooperação. “A contratação dos consultores técnicos é apenas um dos inúmeros aspectos dos acordos (de CTI), e ainda que seja de primordial importância para o eficaz andamento do projeto ou programa, não é, em hipótese alguma, a finalidade última dos mesmos”, diz.

Apesar das considerações da procuradora, Luiz Afonso afirma que o grande atrativo para os organismos internacionais são as taxas de administração. A União paga um valor, não divulgado por nenhuma agência nem pelo Governo Federal, para cobrir os custos com pessoal e material. Uma porcentagem fica para a organização, que repassa uma parcela à sede. Segundo o presidente do FBDH, a matriz da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em Paris, despachou missão de auditoria à Brasília com a orientação de até mesmo encerrar as atividades da representação no país caso houvesse alguma irregularidade, devido o volume de recursos do organismo no Brasil, que ultrapassaria o montante da própria sede.

O fato teria ocorrido durante a gestão do então diretor da Unesco no Brasil, Jorge Werthein. Obviamente, o escritório brasileiro não fechou. “É de se presumir que a agência cedeu aos argumentos da representação brasileira, pois parte substantiva da taxa de ‘administração’ embolsada dos projetos vai para os cofres da organização na França”, afirma. “É de conhecimento público que muitos países, entre eles os Estados Unidos da América, deixaram de contribuir com o orçamento da Unesco em face de sua inoperância e inutilidade para o mundo”, ressalta. “Evidentemente que essa nova e extraordinária fonte de recursos (dos projetos de CTI brasileiros) tornou-se vital para manter a burocracia parisiense, o que apóia a anedota diplomática de que um bom lugar para se fazer crochê em Paris é a sede da Unesco, um verdadeiro ‘dolce far niente’, no dizer dos italianos”, provoca Afonso.

O principal objetivo da CTI é proporcionar a detenção e ampliação de conhecimento das nações em desenvolvimento, o que aumentaria a capacidade produtiva e de gerenciamento público e fortaleceria estes países, principalmente em áreas estratégicas como ciência, tecnologia e saúde. Luiz Afonso afirma que por volta de 1995 a ABC contratou consultoria para elaborar parecer jurídico sobre a situação dos contratados, no que se refere às obrigações trabalhistas. O parecer, segundo o presidente, alertou a administração da agência que os contratos de quase todos os quadros funcionais deveriam ser regidos pela CLT. Apesar da advertência, nenhuma providência foi tomada para corrigir a situação.

No Procedimento Administrativo 1.16.000.001454/2007-67,
a procuradora da República
no Distrito Federal Raquel Branquinho Nascimento diz ser “fato que a partir do início da década de 90, houve um total desmonte do Estado brasileiro, principalmente dos cargos de carreira do Poder Executivo, que passou a contratar pessoal segundo uma estratégia estabelecida e consolidada nesse período, de forma ilícita, em total afronta ao artigo 37 da Constituição Federal, utilizando-se, com desvio de finalidade, do Acordo Básico de Assistência Técnica firmado com a ONU”. O documento trata de representação feita pelo ex-consultor Rudi Braatz, para informar o não recebimento de dívida trabalhista, superior a R$ 1 milhão, que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) foi condenado a pagar.

O texto também cita acórdão do Tribunal de Contas da União que trata sobre Cooperação Técnica e o Termo de Ajustamento de Conduta firmado entre a União e o Ministério Público do Trabalho em 2007 – no qual o atual governo se compromete a substituir toda a mão de obra não concursada, até 2010. Mesmo assim, Raquel Nascimento diz não ver motivos para inscrever o Pnud no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin), devido à inadimplência. Apesar de afirmar que “em determinado período a Esplanada dos Ministérios se transformou numa agência de empregos dos organismos internacionais (Unesno, Pnud, etc.)”, a procuradora determinou o arquivamento do Procedimento Administrativo. Gregos e troianos talvez se entenderiam com mais facilidade.


Ramon Pires
Jornalista


Próximo capítulo – União e agências da ONU (não) dão sua versão. (em 3/3/2009)
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